Quem não lembra da comédia As Loucuras de Dick & Jane (2005), em que o personagem principal, interpretado por Jim Carrey, alto executivo que trabalha na Globodyne, vê o seu mundo desabar e passa por altos apuros devido à falência da empresa? Sem falar no seu vizinho Easter Egg que no final do filme se gaba por ter conseguido um emprego na incrível Enron (mal sabe ele…!)
A hilária e sarcástica película retrata a realidade do início da sucessão de escândalos financeiros de corporações mundiais, iniciados com a falência de uma empresa que seria líder mundial em distribuição de energia e comunicações. O seu faturamento declarado de 101 bilhões de dólares era obtido por meio de manipulação de balanços, com o auxílio de bancos e de empresas de auditorias independentes.
Após esse ciclo, a legislação norte-americana, em 2002, definiu regras para a criação de comitês e mecanismos de auditoria para supervisionar as atividades e operações empresariais. O objetivo era reduzir riscos aos negócios, evitar fraudes e assegurar meios de identificá-las e garantir, com segurança, a transparência na gestão.
A partir de então, entidades certificadoras de normas de controle interno aprimoraram seus modelos com foco na gestão de riscos e no papel estratégico da auditoria interna na avaliação de riscos e controles, a exemplo da Enterprise Risk Management – Integrated Framework (ERM), do Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission (COSO® ).
Hoje há um grande esforço para que a contabilidade pública brasileira siga o padrão internacional, adotado no setor privado, de reconhecimento, mensuração e divulgação de ativos e passivos, como ocorre em diversos países. “No Brasil, o Conselho Federal de Contabilidade e a Secretaria do Tesouro Nacional trabalham em conjunto nessa convergência, desde 2010, construindo e aperfeiçoando o Manual de Contabilidade Aplicado ao Setor Público”, informa Sílvio Cesar Ribeiro Pereira, contador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA), lotado no Departamento de Orçamento e Finanças da reitoria.
Pesquisa premiada
Sílvio Pereira obteve o prêmio de melhor trabalho da área de Contabilidade aplicada ao Setor Público e ao Terceiro Setor, no 13º Congresso da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Ciências Contábeis, realizado em junho na capital paulista.
Silvio apresentou a pesquisa intitulada “A Influência do Sistema de Controle Interno na Divulgação de Provisões e de Passivos Contingentes no Setor Público”. Ela é fruto de sua dissertação de mestrado em Administração pela Fundação Capixaba de Pesquisas (Fucape), defendida no final do ano passado.
O trabalho analisou a influência da Gestão de Riscos e da Auditoria Interna dos estados e do Distrito Federal na divulgação de provisões e de passivos contingentes. “A Gestão de Riscos assegura que o gestor tenha acesso tempestivo aos riscos a que a organização está sujeita, para reduzi-los a níveis aceitáveis, mas sempre divulgando-os adequadamente”, explicou Sílvio. “A Auditoria Interna, por sua vez, tem função de assessoramento imparcial da alta administração, avaliando a gestão de riscos e os controles internos com independência”, complementou.
Resultados
Analisando os demonstrativos contábeis divulgados pelo Poder Executivo dos estados brasileiros e do Distrito Federal, entre os anos de 2011 e 2016, Sílvio Pereira constatou, por métodos estatísticos, que, nos entes que possuíam Gestão de Riscos, havia uma influência negativa na divulgação dos passivos. “Os resultados estatísticos apresentaram um coeficiente negativo quando foram confrontados os números da Gestão de Riscos dos estados brasileiros e a divulgação das obrigações contingentes existente”, relatou Pereira.
De acordo com a pesquisa, apenas seis estados possuíam funções para realizar a gestão de riscos. “Esse número reduzido decorre da ausência de uma regulamentação eficiente, o que desqualifica as práticas da gestão riscos e tem, como consequência, a retenção intencional, por parte do gestor, das informações que deveriam ser disponibilizadas à sociedade”, avaliou Sílvio.
Por outro lado, a existência de Auditoria Interna com atribuições específicas, distintas dos controles internos da gestão e com independência para se reportar à alta administração, faz com que as obrigações contingentes sejam divulgadas adequadamente nos demonstrativos contábeis. “A pesquisa demonstrou que entes que possuíam a função de auditoria, nos moldes que prega a INTOSAI e o Instituto de Auditores Internos, divulgaram os passivos em maior quantidade”, apontou Pereira. “Com a existência dessa função, a estatística revelou uma influência positiva na divulgação das obrigações nos demonstrativos contábeis”, complementou.
International Organisation of Supreme Audit Institutions (INTOSAI) é uma organização não governamental, criada em 1953, com status consultivo especial junto ao Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (ONU). Uma de suas orientações é que as organizações devem implantar um sistema de controle interno com função definida para realizar a gestão de riscos. E que as avaliações dessa atividade e dos controles internos sejam feitas por auditorias internas.
Regulamentação
Em sua análise, Sílvio Pereira pondera que a Auditoria Interna é uma função mais conhecida nas instituições e por isso existe uma normatização mais estabelecida. “A função é de assessoramento imparcial e com independência para poder fazer o seu trabalho e se reportar aos membros da alta administração”, frizou.
De acordo com o pesquisador, estudos anteriores apontam que a gestão de riscos é mal regulamentada no setor público e, mesmo no setor privado, os riscos também não estão sendo divulgados adequadamente. “Os usuários da contabilidade estão insatisfeitos com essa informação, como se verifica nas pesquisas e em casos do dia a dia, como em falências de empresas e nos casos das barragens, a exemplo de Brumadinho”, pontua Sílvio Pereira. “O risco das barragens romperem existia e isso deveria, pelo menos, ter sido divulgado em notas explicativas, para conhecimento dos acionistas”, afirma.
“Com a divulgação dos riscos, é possível à sociedade conhecer a realidade da atividade e melhor fiscalizar, assim como possibilitar ao investidor uma tomada de decisão de investimento (ou não) na empresa, já sabendo que ela corre um risco de, a qualquer momento, sofrer um colapso patrimonial”, explicou.
“Essa divulgação está relacionada com a transparência, como princípio constitucional e normatização legal que trata da contabilidade no setor público”, complementa. “Os baixos índices de divulgação de provisões e de passivos contingentes constatados na pesquisa puderam ser interpretados pela ausência de normas específicas de gestão de riscos no setor público brasileiro que garantem o reconhecimento, a mensuração e a divulgação de obrigações contingentes, exigidas no Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público”, informou.
O que são riscos e obrigações
Contabilmente, uma situação de contingência ocorre quando o resultado final, seja ele favorável ou desfavorável, depende de eventos futuros cujo desfecho ainda é incerto. Portanto, na data de fechamento da demonstração contábil, o passivo contingente contempla eventos previstos, mas com resultados incertos. As notas explicativas inseridas nos demonstrativos contábeis são fundamentais para se explicar o passivo contingente. Já as provisões, embora as suas ocorrências sejam conhecidas e tenham uma obrigação presente, precisam ser mensurados em valores, com prazos de vencimento, para serem evidenciadas no Balanço Patrimonial.
“Se existe o risco de uma obrigação a pagar, suas circunstâncias devem ser analisadas e mensuradas em termos de valor, de prazo e devem ser evidenciadas como provisões ou divulgadas como passivo contingente nos demonstrativos contábeis, explica Sílvio Pereira. “A Gestão de Riscos, avaliada pela Auditoria Interna, faz esse trabalho continuadamente, como no caso de precatórios”, informou.
Há casos em que existe o risco da obrigação ocorrer, mas não se sabe, exatamente, quando, nem o valor disso. Mesmo assim ela deve ser registrada, menciona Sílvio. “A contabilidade não pode se isentar de registrar um passivo contingente em notas explicativas no balanço patrimonial”, afirmou.
“A relação desse registro com a Gestão de Riscos se dá porque ele faz esse trabalho de mensurar e de repassar para a contabilidade efetuar o registro nos demonstrativos contábeis”, assinalou.
“Toda a atividade está sujeita a riscos”, afirma Sílvio Pereira. “E a Gestão de Riscos deve fazer o papel de dar ao gestor o conhecimento prévio para mitigar, buscando reduzir esse risco e fazer com ele seja informado nas demonstrações contábeis”, complementa. “A sua transformação em cifras monetárias e o seu registro ao longo do período permite que a entidade não seja surpreendida com aquela obrigação de uma vez só, impactando o patrimônio”, pondera Sílvio.
Futuras pesquisas
“A pesquisa, efetivamente, descobriu que a
presença da função Gestão de Riscos, nas instituições, na forma como se apresenta, influencia negativamente na divulgação dos passivos”, afirmou Sílvio Pereira.
Ele sugere que futuras pesquisas sejam realizadas com outros entes governamentais, como capitais de estados e municípios. Recomenda, ainda, que devem ser investigadas as razões pelas quais há omissões das obrigações financeiras nos demonstrativos contábeis decorrentes dos riscos da atividade pública.
“A minha expectativa é que o estudo incentive novas pesquisas nesse sentido contribuindo com a qualidade da divulgação de provisões e de passivos contingentes nas demonstrações contábeis”, concluiu. Com informações IFMA