Janela do Tempo lembra a infância

Por Adenildo Bezerra

O poema “Janela”, de Adélia Prado, tem o poder mágico de me levar de volta à infância, como se abrisse, de fato, uma fresta no tempo. Na década de 1980, em Arari, as enchentes eram visitas certas. Todos os anos, o Mearim, o Nema e o Igarapé do Arari transbordavam, e a cidade inteira era tomada pelas águas. As ruas se transformavam em ribeirões, e a vida se rearranjava como podia.
Lembro bem de papai, meu cunhado e meus irmãos saindo para buscar talo, com o qual erguiam os jiraus improvisados dentro de casa, uma casa simples, de taipa e chão batido, agora submersa. Era sobre esse jirau que passávamos os dias até que a enchente desse trégua. E ali, no meio daquela realidade alagada, a janela se tornava nosso mundo.
Era por ela que pescávamos piabas, com anzol de arame e isca de pão. Era através dela que víamos as canoas passarem, que sentíamos o movimento da rua, ou o silêncio dela. A janela era nosso trampolim para os mergulhos nas águas invasoras. Era também meu cavalo de brinquedo: montava sobre ela e deixava o tempo correr.
Por aquela janela, também chegavam as fichas da prefeitura, que nos davam direito às cestas básicas, o sustento dos alagados. Vinha leite, tão ruim que o apelidamos de porronca, feijão duro que o fogo não vencia, farinha seca e sardinha. Era o que mais distribuíam. Reconstruir a moradia, no entanto, era por nossa conta.
Quando a água enfim baixava, partíamos para o Cafezal, então uma mata fechada, em busca de madeira, talo e cipó para reerguer as paredes de barro. A vida simples recomeçava ali, entre a lama e a esperança, à espera da próxima cheia, como num ciclo já conhecido.
E lá estava ela, sempre: a janela. Abertura para o mundo, com tramela e um fio de poesia. Testemunha das cheias, das brincadeiras, da luta e da resistência. Minha eterna claraboia da infância, olho da alma e centelha da memória.

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